terça-feira, 15 de maio de 2012

Urotsukidōji - A Lenda do Demônio

Bizarro, brutal e escandaloso. 
Por: Roberto Maia

A década de noventa, para muitos, é lembrada como a era de ouro das animações japonesas na televisão brasileira, foi nessa época que surgiram clássicos nacionais que são lembrados até hoje por fãs em convenções e fóruns de internet por todo o Brasil.
Colocando em perspectiva, tivemos coisas completamente inusitadas, como “Cavaleiros do Zodíaco”, um clássico brasileiro que não conseguiu a mesma visibilidade em sua terra natal, passando por grandes nomes da época, como “Sailor Moon” e até mesmo “YuYu Hakusho”.
Para emissoras de televisão, distribuidoras e estúdios de dublagem, a receptividade do brasileiro trouxe um terreno propício para novas séries e principalmente gêneros ainda inéditos por aqui.
Uma pérola da época com certeza foi a parceria entre a Rede Manchete e a Gota Mágica para trazer as animações do portfólio da US Mangá Corps, especializada em ficção-científica e mecha (os “robôs gigantes”) para o Brasil.
Animações japonesas eróticas, conhecidas no ocidente como “Hentai”, eram difíceis de obter antes da proliferação da internet e dos gravadores de mídia digital, restringindo-se a iniciativa de pequenas distribuidoras e editoras, como a Everest e a Escala e um restrito comércio de bootlegs em VHS.
No final dessa década a Sato Company, novo nome fantasiado saudoso Brasil Home Video, que trouxe para nosso país clássicos como “Cybercops” e “Akira”, resolveu inovar em nicho com a distribuição da animação erótica “Chōjin Densetsu Urotsukidōji” conhecida aqui no Brasil como “A Lenda do Demônio”.
Exibida pela primeira vez em 1998, na TV Bandeirantes, A Lenda do Demônio causou espanto por mostrar material até então inédito para a atiçada audiência brasileira, mesmo sendo uma cópia fortemente editada e dublada provou ser um verdadeiro sucesso, sendo reprisada três vezes ainda naquele ano, antes de ter a sua exibição censurada.
A razão de sua censura é simples, “A Lenda do Demônio” é o avô dos bizarros devaneios sexuais que encontramos hoje em diversas animações e mangás, consideradas por muito a animação erótica japonesa de maior renome no ocidente, obteve infâmia por causar alvoroço por onde fosse exibida.
Toshio Maeda se mudou de Osaka para Tóquio para seguir seu sonho profissional, ser um desenhista de mangá. Vindo de uma família pobre, o nosso então futuro artista dedicou boa parte sua infância a leitura de mangás e até histórias em quadrinho americanas, sendo fortemente influenciado por nomes como Bernie Wrightson, Neil Adams, Joe Kubert e Gil Kane.
Em 1986, Maeda, agora renomado desenhista de mangás eróticos, se deparou com um pequeno problema no meio, por questões da legislação japonesa, ele não podia retratar cenas eróticas e principalmente o desenho de genitais nas páginas de mangás.
Então ele concebeu a noção do “Tentáculo” para subverter as leis, uma criatura assexuada e incomunicável, onde o tentáculo não seria necessariamente um órgão sexual exposto, mas sim um apêndice ou outra parte de sua fisionomia.
Embora até então o Japão tivesse um passado erótico saudável, ousado e prolífico, com diversos nomes consagrados em sua literatura moderna, o mesmo não podia ser dito nos mangás, onde as histórias sempre retornavam a questões como romances platônicos e situações que beiravam o cômico.
Para conceber “Urotsukidōji”, Toshio Maeda queria algo mais, ele estava sedento por inovação e polêmica, diz a lenda que o autor foi inspirado pela controversa cena de “Lanterna Verde & Arqueiro verde”, onde Neal Adams retratou Ricardito, o sidekick do Arqueiro Verde, agora um dependente químico, injetando uma seringa de heroína em seu braço.
Então Maeda criou o mangá “Urotsukidoji”, uma história erótica diferente das demais, envolvendo ocultismo, seres de outras dimensões e eventos paranormais, convenções até então inéditas no gênero.
Na história, a cada três milênios, um demônio poderoso vem ao Planeta Terra para conceber o equilíbrio entre seres humanos e outros seres sobrenaturais, o protagonista Amano, uma espécie de hibrido homem/demônio é exilado do seu mundo com o objetivo de encontrar a próxima reencarnação do lendário demônio, que de acordo com a profecia, está prestes a acontecer.
Amano descobre então que a criatura lendária reside no corpo do colegial Tatsuo Nagumo, os demônios, querendo a supremacia de sua espécie ao invés do equilíbrio, pretendem assassinar Tatsuo e cabe a Amano evitar que isto aconteça.
Ao contrário de outras produções eróticas, o roteiro é presente e consistente, contendo reviravoltas e surpresas ao longo dos três capítulos da animação, além do conteúdo erótico, a série ficou conhecida pelo uso excessivo de violência.
Neste caso, Toshio Maeda é injustamente acusado, as cenas de gore são atribuídas a liberdade artística do diretor da animação, Hideki Takayama, que adaptou o mangá para a animação e adicionou cenas de tortura, estupro, sadismo e horror.
Em entrevista, Toshio Maeda declarou que achou a adaptação para anime “cruel, sádica e repugnante”, mas ainda assim elogiou a abordagem de Takayama para sua obra. Quando questionado da intenção de narrar uma história tão violenta e cruel, Takayama respondeu: “Nada é mais excitante para o ser humano que violência e sexo. A mistura dos dois é uma combinação poderosa”.
A animação sofreu sérias censuras em diversos países do ocidente, sendo que em casos mais extremos, como na Austrália e Inglaterra, foi proibida de ser exibida em qualquer circunstância e causou má fama e estigma, generalizando a opinião pública em relação as animações japonesas.
Aqui no Brasil, “A Lenda do Demônio” nunca foi mais exibida em rede aberta, até mesmo com diversos canais voltados para a animação japonesa, como a Locomotion e o Animax, manteve distância deste ainda controverso gênero no ocidente.
Salvo algumas exibições em eventos especializados, pouco é lembrado do anime e o impacto que ele causou em tão pouco tempo para os fãs brasileiros.
A Sato Company, que atualmente distribui as cópias autorizadas de “Naruto” no mercado brasileiro não possui nenhum plano para relançar esse clássico cult da década de noventa.
Para quem puder realizar compras internacionais, “A Lenda do Demônio” (e suas continuações) podem ser encontradas na Amazon.com sob o título de “The Legend of the Overfiend” inclusive em cópias Blu-Ray.
Eu recomendo “A Lenda Do Demônio” por uma série de razões, principalmente por se tratar de um clássico, o equivalente de “Salò ou 120 Dias de Sodoma” de Pasolini para as animações japonesas: polêmico, inquietante e principalmente, perturbador, mas graças ao princípio da liberdade artística.
Vale também lembrar que é uma das primeiras incursões criativas dos animes e mangás japoneses no território do bizarro e improvável, se você é fã de animações, não deixe de conferir.


Postado originalmente no blog Contraversão.

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