Filho caçula e testamenteiro literário do autor transformou as versões incompletas de “Os Filhos de Húrin” (Narn i hîn Húrin) em narrativa coerente
Não há o menor sinal de finais felizes ou hobbits ingênuos e heróicos em “Os Filhos de Húrin” (WMF Martins Fontes, 338, pags., R$ 69), obra póstuma de J.R.R. Tolkien (1892-1973) que acaba de chegar ao Brasil. A “nova” saga tolkieniana se passa 6.500 anos antes de “O Senhor dos Anéis”, livro mais famoso do autor, e tem como herói um guerreiro culpado de incesto, traição e assassinato.
Tolkien, filólogo da Universidade de Oxford e especialista nas línguas e literaturas da Europa Medieval, mergulhou no ambiente trágico das sagas escandinavas para escrever o livro.
As primeiras versões da trama vieram à tona quando o autor servia o Exército britânico na Primeira Guerra.
Após décadas de revisão, o texto (ou melhor, o complexo de textos, já que o filólogo nunca decidiu explicitamente qual era a versão final) continuava engavetado quando o escritor morreu.
Coube a Christopher Tolkien, 85, filho caçula e testamenteiro literário do autor, a tarefa de transformar o labirinto de versões numa narrativa coerente.
O resultado funciona, embora quem só conheça “O Senhor dos Anéis” provavelmente sinta a estranheza de um texto que foi deliberadamente construído para não parecer moderno. “Sem dúvida, “O Senhor dos Anéis” é mais acessível ao público.
E mesmo assim há aqueles que não o compreendem, vêem o livro como um fracasso como romance. Imagine então essas pessoas tendo o primeiro contato tolkieniano com essa obra, cuja complexidade e caráter de “não romance” são gritantes”, diz o tradutor Gabriel Oliva Brum, especialista na obra de Tolkien que verteu as cartas do autor para o português.
Uma das cartas, aliás, explicita os modelos mitológicos que inspiraram a criação de Túrin Turambar, herói da narrativa (e um dos “filhos de Húrin” do título): o grego Édipo, o finlandês Kullervo e o escandinavo Sigurd, um matador de dragões.
A sombra de Morgoth
O trio de personagens inspiradores é, em parte, empurrado pelo destino rumo a um fim trágico, mas também dá uma mãozinha à má sorte ao não controlar seus piores instintos e esse é justamente um dos temas centrais de “Os Filhos de Húrin”.
Na trama, Húrin, patriarca da malfadada família, é um guerreiro da raça humana que se alia aos monarcas dos elfos na luta contra Morgoth, o Inimigo do Mundo. Morgoth é, literalmente, o Demônio encarnado como imperador na Terra (Tolkien, católico praticante, via sua mitologia como uma recriação das “verdades” teológicas cristãs), e seus exércitos triunfam, capturando Húrin.
O guerreiro se recusa a trair seus aliados élficos, zomba de Morgoth e, por isso, ele e sua família são amaldiçoados. O interessante, porém, é que Tolkien mantém o tempo todo a ambiguidade sobre as desgraças que dilaceram o clã de Húrin. A maldição pode até ser poderosa, mas a cabeça-dura e o gosto pela violência de Túrin são essenciais para que a profecia de perdição se realize.
A contraparte da maldição, no entanto, é a determinação de resistir, mesmo sem a menor esperança de triunfar, outro tema da mitologia escandinava caro a Tolkien. É que, para os antigos escandinavos, no fim dos tempos as forças das trevas, e não os deuses “do bem”, é que iriam triunfar.
Os deuses sabiam disso, mas mesmo assim se preparavam para a batalha final. Tolkien chamava esse conceito de “teoria da coragem do Norte”, e o opunha à obsessão pelo realismo político que, para o autor, tinha desembocado nas grandes tragédias do século 20. “Os Filhos de Húrin” talvez seja a expressão definitiva da “teoria da coragem” em sua obra.
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